A família Eugénio de Almeida
Esta sala recebe diversas designações decorrentes da sua função no contexto da residência ou de características ligadas às representações pictóricas que revestem por completo o seu teto.
Enquanto residência da família Eugénio de Almeida, e como é possível inferir do mobiliário e da decoração deste espaço, trata-se da sala de estar do piso térreo onde habitualmente eram recebidos os convidados, as visitas e amigos do casal. A vocação e a vivência social deste espaço é sublinhada quer pela presença do piano, elemento essencial nas soirés tão características do século XIX, quer dos jogos de sala, que podemos observar sobre a mesa com o monograma em marfim da família Eugénio de Almeida embutido no tampo de madeira.
No topo norte da sala e quase que cumprindo a boa etiqueta social e a vocação desta divisão, encontramos a "receber-nos" nesta galeria de retratos, alguns dos membros mais destacados da família Eugénio de Almeida, antepassados do Instituidor da FEA.
O primeiro, trata-se de uma litografia de 1856, da autoria do alemão Ignaz Fertig (1808-1858), impressa na oficina de Lopes e Bastos, em Lisboa, que representa José Maria Eugénio de Almeida (1811-1872), o primeiro a usar o nome Eugénio de Almeida. Embora formado em Direito [ou talvez por isso], o seu caráter empreendedor e visionário, direcionou-o para uma carreira sucesso no universo dos negócios. Foi o principal responsável pela construção da fortuna da família Eugénio de Almeida através de uma relevante atividade de industrial e da aquisição e exploração de um vasto património fundiário que se estendia, disperso pela geografia do país, de Trás-os-Montes ao Algarve. As suas preocupações de carácter social, que constituíram também uma inspiração para a ação filantrópica dos seus descendentes, estiveram sempre presentes ao longo da vida.
O retrato sobre o piano, uma pintura a óleo sobre tela, é da autoria do pintor belga Max Moreau (1902-1992) e representa o filho de José Maria Eugénio de Almeida, Carlos Maria Eugénio de Almeida (1845-1914). Seguindo orientações do pai, foi o primeiro membro da família a formar-se em Engenharia Agrícola, no Instituto Superior de Agronomia (ISA), opção que se revelava estratégica tendo em conta a dimensão do património agrícola que era necessário explorar e administrar. É a Carlos Maria Eugénio de Almeida que se fica a dever o desenvolvimento e consolidação da estratégia agrícola de que é consequência a aproximação progressiva da família a Évora, onde se concentrava a maior parte das suas herdades.
O terceiro retrato, é também uma pintura a óleo sobre tela do mesmo pintor, Max Moreau, e representa José Maria Eugénio de Almeida que tinha, portanto, o nome do avô. Tal como o pai, era formado em Engenharia Agrícola. Em 1902 foi agraciado com o título de Conde de Vill’Alva pelo Rei D. Carlos. Apesar desta distinção, a sua relevância ao nível da administração da Casa e da gestão dos negócios não é equiparável à dos seus dois antecessores. A principal razão deve-se ao facto de, pós a morte do pai ter sido a sua mãe, Maria do Patrocínio Barros Lima a assumir a liderança dos negócios da família até à morte, em 1940, que aconteceu dois anos após o falecimento do filho.
O 1.º Conde de Vill’Alva casou com Alice Irene de Sousa Araújo, em 1902, mas desse casamento não teve descendência. De uma relação fora do casamento com D. Antónia Gomes nascerá Vasco Maria Eugénio de Almeida, o único dos Eugénio de Almeida a residir no Paço de São Miguel, onde nos encontramos e cujo retrato a aguarela se encontra à entrada para a Sala da Tomada de La Goletta ou Sala de Jantar.
Lançando um olhar retrospetivo sobre estas três gerações, poderíamos dizer, sintetizando que, José Maria Eugénio de Almeida foi o génio empreendedor e visionário, Carlos Maria, o agricultor e o 1.º Conde de Vill’Alva o sport man, o gentleman ou o homem de sociedade.
No contexto da sociedade portuguesa do século XIX, a relevância e o estatuto alcançados pelos membros da elite social eram, o mais das vezes, acompanhados por um train de vie (ou estilo de vida) com sublinhados de conforto e de distinção que se manifestavam também no requinte decorativo dos espaços de residência e na existência de peças únicas, como é o caso do biombo chinês, ou das que ostentavam as armas e os monogramas da família, encomendadas aos melhores artífices, artistas e fabricantes europeus.
Para além da mesa de jogos, também as águias em cada topo da sala possuem um entalhe com o monograma da família, com a particularidade de se encontrarem assinadas pelo artista parisiense Henri Fourdinois, um dos mais brilhantes desenhadores de mobiliário do seu tempo e fornecedor de algumas das principais casas reais europeias. Henri Fourdinois foi também o responsável pelo desenho e fornecimento das cadeiras em palhinha - que circundam a mesa de jogo - com o espaldar encimado pelo entalhe do monograma da família Eugénio de Almeida. Estas cadeiras seriam mais tarde replicadas pelo artífice português João Francisco de Castro.
A escolha e aquisição de mobiliário visava naturalmente o conforto dos residentes mas era também um instrumento de representação social para as ocasiões em que se recebia; uma forma de afirmação do estatuto e de promoção do seu reconhecimento. Esse mobiliário impunha-se visualmente pelo seu valor intrínseco (no que se refere aos materiais e aos méritos dos artistas e fabricantes), mas também por poder ter associado um carácter funcional promotor de práticas e hábitos sociais reconhecidos como próprios da high life. O piano e os jogos de sala como o bilhar eram disso um bom exemplo.
No contexto da afirmação do prestígio social, as visitas e o receber socialmente – ou o que mais genericamente se enquadrava à época na designada mundanidade – desempenhavam um papel importante. As ocasiões para visitar são múltiplas, como por exemplo, as “visitas de digestão” realizadas nos oito dias que se seguiam a um jantar ou a um baile para que se foi convidado, de forma a fazer o balanço e os comentários ao evento. Havia também as visitas de “conveniência”, três ou quatro vezes por ano às pessoas com quem se deseja manter algumas relações, as visitas de felicitações (por casamento, um cargo importante que se obteve, uma condecoração), de condolências, de despedida e de regresso de uma viagem, para evitar o incómodo de uma deslocação àqueles que se arriscassem a uma visita quando se está ausente. Isto, claro está, para além das visitas de cerimónia, devidas aos superiores, uma vez por ano, em que a mulher devia acompanhar o marido.
Embora revestidas de um carácter de lazer, as visitas constituíam assim quase um encargo social do estatuto e do estilo de vida que se pretendia evidenciar. Se não se recebia socialmente, se não se franqueavam as portas do espaço de residência, era como representar no palco de um teatro sem plateia, ou seja, em vão... como num certo sentido em vão seria, naturalmente, a laboriosa atividade económica que, sem um programa de promoção do estatuto social conforme ao capital acumulado, deixaria de fazer sentido.
A pintura a fresco
Um dos aspetos mais relevante desta sala são as pinturas que revestem o teto. Trata-se de pintura a fresco, realizada sob encomenda dos Condes de Basto. Embora não se encontre assinada, é provável que esta obra se enquadre na escola de Francisco de Campos, autor das pinturas da Sala do Amor. O historiador de arte, Prof. Vítor Serrão, considera a hipótese de se tratar de pinturas da autoria do artista inglês Tomás Luís que as terá executado cerca do ano de 1583. Pouco se sabe sobre este pintor embora se pense que seja discípulo da escola maneirista de Francisco de Campos. A atribuição da autoria das pinturas baseia-se, comparativamente, no estilo e na perícia do artista, bem como nas temáticas representadas, muito similares às que podemos encontrar no Paço Ducal de Vila Viçosa e na Santa Casa da Misericórdia do Montijo.
A superfície da abóbada encontra-se dividida em 22 painéis losangulares. A composição é dominada largamente por motivos zoomórficos em que as aves, assumindo um particular destaque, se revestem de uma enorme carga simbólica, espelhando normas de conduta para o exercício do poder, associado a princípios de elevação espiritual.
A descodificação deste programa ilustra-se nas diversas representações que podemos observar como, por exemplo, nas imagens: a) da cegonha, símbolo de vigilância e de prudência, que aniquila a serpente, associada ao mal e aos vícios humanos; b) do pavão de cauda aberta denunciando o orgulho e a vaidade através da sua plumagem magnífica, que tem o contraponto no painel oposto da sala em que a mesma ave surge de cauda fechada como revelação de humildade e renúncia à arrogância do amor-próprio.
As representações funcionam, assim, como um código ético figurativo de que os Condes de Basto se investem e legam às gerações seguintes para o bom desempenho da sua autoridade enquanto Capitães-mor da cidade de Évora, razão de esta divisão do Paço de São Miguel onde nos encontramos ser também conhecida por Sala da Virtude.
Neste programa fresquista é ainda “considerável a presença de um certo exotismo transmitido por papagaios, catatuas e, referência importante de um sentido de novidade, o destaque da figuração do peru, ainda associado, no século XVI, ao imaginário da descoberta de novas terras, como o continente americano”.
A dimensão moral ou moralizante dos frescos, associada à qualidade pictórica e à imponência do enquadramento arquitetónico, não podiam deixar de produzir no observador de ontem e de hoje a ideia da elevação, da grandeza e do poder dos seus patrocinadores, neste caso os Condes de Basto. O seu objetivo era justamente engrandecer e embelezar o edifício, para que pudesse refletir a crescente riqueza patrimonial e prestígio político-social dos Castro.
Esta manifestação do seu poder e estatuto económico era particularmente sensível em Évora que, desde o limiar do século XVI, se assumira como um importante foco cultural da Península Ibérica e era considerada a segunda cidade do país, como o comprova a frequência com que contava com a presença do rei e da corte. Registe-se, aliás, que a campanha de obras de 1570 promovida pelo 3.º Capitão-Mor da cidade, D. Diogo de Castro, teve como objetivo conferir ao espaço a dignidade necessária para receber o Rei D. Sebastião que aqui residiu na primeira metade da década de 70 do século XVI. É da presença do jovem rei no Paço de São Miguel que esta divisão recolhe também a designação de Sala de Audiências.
Os frescos são também uma forma de afirmação do estatuto através da arte. A Sala de Audiências foi o espaço onde os Condes de Basto representaram, através, dos frescos o seu poder e foi, portanto, um local para ser visto pelo mundo exterior. Essa mesma sala foi também o local que, séculos mais tarde, recebeu o mobiliário utilizado por várias gerações da família Eugénio de Almeida para evidenciar o requinte da sua vivência “privada”. Em nada disto parece haver uma coincidência, mas uma apetência do espaço para desempenhar essa função de representação social que a sensibilidade do Instituidor da Fundação Eugénio de Almeida soube uma vez mais interpretar. Não é por isso de estranhar, que este espaço de representação social, fosse também o espaço escolhido no Paço pela Sociedade Recreativa e Dramática Eborense, para as suas representações teatrais enquanto aqui teve a sua sede. Parece que tudo se encaixa...
Nesse período em que esta divisão funcionou como sala de espetáculos, bailes e representações teatrais, o espaço encontrava-se circundado por uma mezzanine que funcionava como camarote e enquadrava o palco, no topo norte, onde hoje, curiosamente se encontra um outro elemento artístico distintivo... o piano.
Se é verdade que a ocupação deste espaço pela família dos Castro e pela família Eugénio de Almeida dista entre si cerca de cinco séculos; e se não é menos certo que a história das duas famílias apenas se cruza por ambas terem habitado em épocas muito diferentes o Paço de São Miguel, também é permitido imaginar existir um doce enredo subterrâneo do tempo para que a águia majestática dos Castro, uma exaltação da liberdade que deve informar o poder para o equilibrado exercício da justiça, encontrasse, por fim, cinco séculos depois, companhia nas águias majestáticas dos Eugénio de Almeida.